O romance "Natureza morta" é construído por José Fontenele em torno de um tema sensível e doloroso: a morte de um bebê durante a gravidez, o chamado parto interrompido. O luto da personagem Laura, que perde primeiro Henrique e, pouco mais de um ano depois, Rafael, não é um luto muito reconhecido pela sociedade, seria uma espécie de dor menor, mas que para a mãe "é como se a natureza dentro de mim não me quisesse como raiz de nada".
A narrativa, com suas muitas doses de dramaticidade e personagens singulares, é bem conduzida pelo autor, que alterna as vozes de Laura e seu marido Damião, que, ao não entender esse tipo de luto, se refugia em um silêncio constrangedor. Em volta dele, todos são vistos e caracterizados como animais, uma forma de representação da sociedade que vai se encaixar muito bem com o destino do personagem, no final do livro. "Todo dia era forçado a ultrapassar bicos, penas, patas, narizes que ninguém sabe o nome, cascos, asas, falsos pés, e toda a sorte de animália possível".
Incompreendida pelo marido e pela família, Laura usa a pintura para enfrentar a sua dor solitária. Mas de repente, do nada, ela se vê cercada, em seu apartamento, por pessoas interessadas em ajudá-la, o aspirante a escritor Hipólito e Tereza, que consegue uma exposição para as obras de Laura. A forma como esses novos personagens são vistos pelo casal é completamente diferente entre Laura e Damião, que os vê como dois intrusos em sua vida com a esposa, enquanto Laura os percebe como eles realmente são: a sua tábua de salvação, o único pedacinho de esperança que ela tinha para se agarrar à vida. "Já ouvi que para ser feliz a dois, nunca devemos nos revelar completamente ao parceiro. Algo como se fôssemos um capítulo de novela que se renova dia a dia, indefinidamente, até a hora desconhecida da morte".
Damião representa a vida adaptada ao sistema, um emprego chato em um hotel, mas suportável apenas pelo desejo de crescer na empresa, e a indiferença, ou a falta de compreensão, em relação ao problema da esposa, facilmente substituível por um jogo de futebol na noite de quarta-feira na TV, aliada à falta de bom senso ao tocar em assuntos traumáticos com a esposa no dia da vernissage dela. Enquanto isso, Laura vive no fio da navalha, uma vida frágil, que pode ser rompida a qualquer momento, e que acaba sendo a o principal combustível para a qualidade da sua pintura: "Mas não tem jeito, Arte é um ofício irregular porque áspera é a vida".
Como foi dito no início, o livro trata de um tema sensível e complexo e José Fontenele, por ser homem, obviamente jamais poderia sentir, em toda a sua dimensão, a dor de Laura ao perder dois filhos durante a gravidez. Mas uma das grandes qualidade deste livro é exatamente o uso da empatia pelo autor, essa capacidade de se sentir no lugar do outro, mergulhando fundo na tristeza e frustração de Laura. Acredito que após a leitura de "Natureza morta" muitos terão um olhar diferenciado para esse tipo de luto tão comum, mas ao mesmo tempo tão oculto pela sociedade.
'
Eu com o autor
SOBRE O AUTOR
José Fontenele nasceu no Piauí. É jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escritor e organizador cultural. Autopublicou seu primeiro romance, O ralo da consciência, em 2014. Está entre os coordenadores do Clube da Leitura RJ e o Clube de Leitura ZO (RJ). Participou da coletânea Clube da Leitura Vol. IV (Rubra), como escritor e organizador; e tem um conto na coletânea 80 anos, devagarinho — Conta forte, conta alto, publicada pela Festa Literária das Periferias (FLUP), em homenagem à obra de Martinho da Vila. Escreve sobre Cultura e Literatura para a revista literária Revéstres. Colabora com resenhas para sites de literatura e trabalha na agência literária Oasys Cultural. Mora na cidade do Rio de Janeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário