11.23.2021

AS ORIGENS DE CAMPO GRANDE

O bairro de Campo Grande tem suas origens no século XVI, logo após a fundação do Rio de Janeiro, em 1º de março de 1565, por Estácio de Sá. Nos anos e décadas seguintes, a ocupação do solo foi feita a partir da distribuição das sesmarias, que eram grandes porções de terras distribuídas a quem o Reino de Portugal achava que merecesse, principalmente os que lutaram contra franceses e índios tupinambás na conquista e fundação da cidade. Essas sesmarias, se não fossem ocupadas e desenvolvidas, eram devolvidas, as chamadas "terras devolutas". Muitas se desenvolveram, entre elas as que deram origem à imponente Fazenda de Santa Cruz, origem deste importante bairro da zona oeste.

Campo Grande começou a ser ocupado, assim, no final do século XVI, e realmente justificou o seu nome, pois nos documentos era chamado de "o Campo Grande", uma região que ia da altura do atual bairro e arredores até o local onde seria o bairro de Realengo. Tanto é verdade que a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Desterro, bem na área central de Campo Grande, foi fundada em 1673 no local onde hoje é o bairro de Bangu pelo fazendeiro Manuel de Barcelos Domingos. Muito mais tarde ela seria transferida para o atual local. No final do século XIX, após um incêndio que a destruiu por completo. O padre Belisário dos Santos, com apoio do governo e da população, conseguiu que o templo atual fosse erguido. O sacerdote, cujos restos mortais estão sepultados dentro da igreja, morava na casa paroquial que mais tarde seria o Colégio Belisário dos Santos, um dos mais tradicionais de Campo Grande e demolido em 2014 para a construção de um estacionamento.


10.18.2021

A PONTE DOS JESUÍTAS

 



Construída em 1752, a Ponte dos Jesuítas é um dos mais importantes e bem preservados símbolos da arquitetura colonial do Rio de Janeiro. Também conhecida como Ponte do Guandu, ela não é uma ponte comum, e sim um ponte-comporta, já que através dos seus arcos era usada para regular a passagem das águas do Rio Guandu, que hoje não passam mais por ali, e também desviá-las para o Rio Itaguaí através de um canal artificial. Com 50 metros de extensão e seis de largura, ela também servia como passagem dos tropeiros que circulavam pelo "sertão carioca", levando mantimentos e outros produtos pelas muitas fazendas da região.



Seu piso é formado por sólidas lajes, no calçamento conhecido como pé de moleque, muito usado em Paraty e o terror dos saltos altos das mulheres. Os quatro arcos, revestidos internamente com pedra, eram chamados de "óculos", e os padres, por meio de comportas de madeira, controlavam a água para evitar enchentes que destruíam as plantações, matavam o rebanho e inundavam as casas. Feita de cantaria e construída na administração do padre Pedro Fernandes, grande empreendedor da fazenda, a ponte é ornamentada por oito colunas de granito com capitéis (parte superior de uma coluna ou pilastra) em forma de pinhas portuguesas. Na parte central, entre belas esculturas barrocas, há um bloco em mármore lioz, onde se vê um brasão com o símbolo da Companhia de Jesus (IHS) e a data de 1752, além da seguinte inscrição em latim:

Flecte genu, tanto sub nomine, flecte viator
Hic etiam reflua flectitur amnis agua

Que, traduzida para o português, diz o seguinte:

Dobra o joelho sob tão grande nome, viajante
Aqui também se dobra o rio oem água refluente



A ponte fez parte do amplo trabalho dos jesuítas de controle das águas, drenagem e irrigação da ampla área da Fazenda de Santa Cruz, repleta de pântanos e terrenos alagadiços em geral, sempre sujeitos a inundações. Dois padres foram mandados para estudar na Holanda, que enfrentava os mesmos problemas, para aprender os procedimentos corretos. Foram feitos mapas hidrográficos por toda a região, e os vales, morros e elevações em geral, foram estudados. Os jesuítas concluíram que os leitos dos rios deveriam ser contidos nos pontos de inundação, com as pontes-comportas, aberturas de valas e canais para o escoamento das águas, solucionando o problema de enchentes e secas e tornando a Fazenda de Santa Cruz uma das mais produtivas do Brasil.



Com a canalização do Guandu, cujas águas abastecem a população da cidade, a ponte perdeu sua função original, mantendo, no entanto, a importância histórica e arquitetônica, tanto que seu tombamento foi um dos primeiros do país, em 1938, quando o governo de Getúlio Vargas criou a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje o mais instituto de preservação do patrimônio, o Iphan (só mudando o "diretoria" para "instituto"). Infelizmente a ponte sofreu degradação de pessoas que retiraram partes de sua estrutura para algum tipo de obra, inclusive com a derrubada de duas colunas, mas os constantes trabalhos de recuperação (principalmente os de 2007, feitos pela prefeitura do Rio de Janeiro) e a conscientização da população local estão dando a este importante monumento da cidade o seu real valor. A Ponte dos Jesuítas fica na Estrada do Curtume.

- Fotos tiradas por Ronaldo Morais em 1984. Hoje a ponte está bem conservada.

10.11.2021

RIOS ANTIGOS

 

Um dos principais sintomas da degradação ambiental de uma cidade ocorre quando seus rios passam a ser chamados de valões. Aqui no Rio de Janeiro isso ocorre em todos os bairros e o mais irônico é que a cidade carrega um rio no nome e também foi um rio que deu nome aos nascidos na cidade, o Carioca, hoje quase totalmente canalizado. Tem apenas um pequeno trecho visível no Largo do Boticário, no Cosme Velho, e desemboca de forma muito mal-cheirosa na Praia do Flamengo.

Apesar da lastimável situação atual, os rios antigos já foram o principal meio de transporte desta cidade, já que as poucas trilhas que existiam eram perigosas e cheias de obstáculos. Assim, rios como o Maracanã, o Comprido, o Carioca, o Andaraí, o Piraquê, o Meriti, o Piraquara, o Guandu e tantos outros foram responsáveis pela maior parte da movimentação de cargas e passageiros da cidade por muito tempo, sempre atrelados a ancoradouros e portos que já não existem, como os de Irajá e Maria Angu, fundamentais para o escoamento de boa parte da produção agrícola do subúrbio carioca. Destes tempos de grande importância para o desenvolvimento da cidade só ficaram mesmo os nomes dos rios - boa parte subterrâneos - e os que não passaram por este processo ficam expostos a todo tipo de degradação, não apenas do esgoto jogado in natura nas suas águas, que nascem limpas e cristalinas nas serras, mas também à falta de educação dos moradores próximos que jogam todo tipo de porcaria em suas águas, de sacos plásticos a cadeiras, sofás e até geladeiras velhas. 

Fica aqui uma sugestão, que já compartilho com alguns amigos: por que não chamar o rio pelo nome? Nos mapas da prefeitura, é fácil identifica-los e alguns têm até plaquinhas. Não que isso vá lá mudar muita coisa, mas só de não chamá-los de valão, nome que simboliza sujeira e podridão, quem sabe eles não passem a ser mais respeitados? Afinal, não dizem que o sujeito só passa a existir quando é batizado? Eu não sei não, mas depois que passamos a chamar o rio perto da minha casa pelo nome dele, Cabuçu-mirim, afluente do Cabuçu, que desemboca no Piraquê e deságua na Baía de Sepetiba (este poderia ser o seu ´nome completo), já percebi que duas garças aparecem por lá todas as manhãs e ficam se refestelando num banco de areia que surgiu milagrosamente no meio do rio.

 * Imagem atual do Rio Carioca, na altura do Largo do Boticário

9.27.2021

CONSTRUÇÃO CARTOGRÁFICA EM SANTA CRUZ

 


Apresentação do projeto de Construção Cartográfica em Santa Cruz, um belo trabalho para o qual fui convidado a participar, organizado pela jornalista Juliana Braga e com jovens do bairro, que fizeram um mapeamento histórico e afetivo de Santa Cruz. Em breve o vídeo do projeto vai ser disponibilizado e haverá também uma exposição com as fotografias tiradas pelo jovens. O lançamento ocorreu hoje de manhã no Noph, Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz, no Palacete Princesa Isabel. O Noph é coordenado pelo historiador Bruno Cruz.



SINOS, INCÊNDIOS E BALEIAS

 Numa cidade cheia de sirenes e motores, é preciso fazer um grande esforço para se pensar na tranquilidade que devia ser quando estes e outros ruídos ainda não existiam. No centro do Rio de Janeiro, como havia, e ainda há, muitas igrejas, o auxílio dos sinos era fundamental. Eram eles que indicavam aos bombeiros o lugar exato do fogo, além de casamentos, enterros e outros eventos importantes. E indicavam também, como no caso do temido "toque do Aragão", a hora de se recolher.

O desembargador Francisco Alberto Teixeira de Aragão era o Intendente Geral (uma espécie de prefeito) em 1825, quando através de um edital foi determinado que os sinos das igrejas de São Francisco de Paula e do Mosteiro de São Bento tocariam durante meia hora, às 10 da noite, no verão, e às nove, no inverno, para alertar as pessoas de que ninguém deveria sair de casa até o amanhecer. Quem saísse seria revistado e poderia ser preso. Tudo para diminuir os casos de roubos e arruaças, bem menores do que hoje, porém já significativos para a época. Entre os principais arruaceiros, estavam os capoeiras, geralmente escravos fugidos que saíam em bandos para atacar as pessoas, ou mesmo a polícia, com seus "rabos de arraia" e outros golpes.

Os sinos já anunciavam os incêndios desde o início do século XVII. Se ocorresse à noite, no centro comercial da cidade, por exemplo, ele era avisado pela Igreja de São Francisco de Paula. Os sineiros também ganhavam dinheiro para anunciar o nascimento dos filhos de pessoas importantes. Se fosse do sexo masculino, eram nove badaladas, se fosse menina, davam sete toques. "Cidade de frequentes festas religiosas e procissões quase diárias, com foguetes e espocos e sinos a repicar, o velho Rio de Janeiro exteriorizava na música alegre dos sinos a alma simples e boa do seu povo" (Crônicas da cidade do Rio de Janeiro, Noronha Santos).

Outro aspecto dos incêndios que merece ser citado é o que ocorria quando os bombeiros partiam para apagar o fogo - sem sirenes, é claro. Se fosse à noite, os donos das casas que ficavam no caminho tinham de colocar lampiões na entrada para iluminar o trajeto, mesmo que precariamente. Quem não fizesse isso, corria o risco de ser punido. Os lampiões eram acesos, em sua maior parte, com o óleo extraído das baleias que infestavam a Baía de Guanabara. Antes de 1854, quando a iluminação a gás fez com que o Rio de Janeiro deixasse de ser uma cidade de sombras, o óleo de baleia era de fato o principal combustível dos lampiões e dos oratórios que ficavam nas esquinas.
As baleias foram embora há muito tempo e deixaram em seu lugar, nas escuras águas da Baía de Guanabara, personagens mais exóticos, como pneus de carro e garrafas de refrigerante.


9.20.2021

LEITE COM MANGA

 Uma das atitudes mais corajosas que já tomei na vida foi quando pedi um copo de leite com manga numa agradável tarde de sábado em um bar do subúrbio carioca de Cascadura. Não que as condições do estabelecimento fossem inadequadas, era até simpático o bar, mas o ato de coragem se justifica por eu ter ouvido desde pequeno que a mistura de leite com manga poderia levar à morte em poucos minutos.

Não sei de onde veio a argumentação de que estas duas substâncias unidas poderiam provocar uma explosão fatal ao entrar no organismo, mas sei que ela existia e era constantemente lembrada, acabando por se constituir numa das lendas urbanas de maior durabilidade, tal qual a da mulher loura no banheiro, embora esta eu nunca tenha tentado desafiar e muitas vezes, quando criança, cheguei em casa com a bexiga no limite por medo de entrar no banheiro do colégio.
 Também não sei por quais cargas d´água tomei a coragem de fazer o insólito pedido naquela tarde, enquanto aguardava meu ônibus chegar ao ponto. Tinha 18 anos, estava feliz, ia a uma festa e não havia qualquer sombra de comportamento autodestrutivo em minha vida. Talvez fosse uma espécie de rito de passagem, aquela situação que todo adolescente precisa enfrentar antes de ingressar na fase adulta de peito aberto, deixando para trás o medo e a insegurança.
Pois bem, devia ser isso mesmo. E lá fui eu, cheio de coragem, pedir a estranha mistura num bar cheio de gente bebendo cerveja e outras misturas mais fortes. O ridículo da cena talvez lembre o personagem Shane, interpretado por Alan Ladd, pedindo uma gasosa no bar cheio de “homens brabos” do filme “Os brutos também amam”.
O mais incrível foi que, ao fazer o pedido, o atendente rapidamente se prontificou a fazer a, digamos, vitamina, ainda perguntando se eu queria com gelo. Enquanto ele preparava, fiquei pensando: será que esse perigo só existia na minha família? Mas não podia ser. Vários amigos e conhecidos me asseguravam que a mistura leite com manga era tão fatal quando picada de lacraia (outra história terrivelmente ameaçadora). Ou então será que aquele bar era o único bastião contra estas lendas disseminadas de geração a geração? Ou o dono era um sádico especializado em matar fregueses incautos e enterrá-los nos fundos do estabelecimento, como um bom filme americano de terror classe B?
Não sei, nada ali parecia tão ameaçador. E quando a mistura ficou pronta e o atendente falou, num tom razoavelmente alto, “sai um leite com manga”, não vi ninguém espantando. Achei até que alguma velhinha pudesse pegar o copo e despejá-lo subitamente na calçada e ainda me dar um belo de um esporro por ser tão inconsequente. Não, nada aconteceu. E então, de frente para o Viaduto de Cascadura, bebi tranquilamente meu primeiro copo de leite com manga. Paguei, agradeci e o atendente me deu o troco como se nada tivesse acontecido.
Peguei meu ônibus e achava, inconscientemente, que algo ainda aconteceria. De qualquer forma, tinha meu endereço e um número de telefone na carteira, como meu pai sempre recomendava, e por isso alguém (uma enfermeira, o mais provável), poderia dar a trágica notícia à família. Mas, também desta vez, nada aconteceu. Fui à festa, me diverti bastante, voltei para casa no dia seguinte e nas 48 horas seguintes, que seriam de observação e monitoramente, não tive nem uma diarreiazinha sequer.

Confesso: me decepcionei. Uma verdade tão inquestionável como aquela precisaria ter um fundo de...verdade, pelo menos. Um mito não cai por terra assim, sem esboçar um mínimo de reação. Mas aquele caiu, de forma irrefutável. Contei a façanha para amigos e familiares e alguns ainda me chamaram de louco e inconsequente. Seja como for, depois disso passei a adotar a vitamina de leite com manga no meu cardápio e me enchi de coragem para tomar outras atitudes impetuosas, como tomar banho depois do almoço ou andar de ônibus pela avenida Brasil de madrugada. Mas a mulher loura no banheiro, esta ficou sempre no meu imaginário como um símbolo de medo e covardia. 

* Este texto faz parte do meu livro de crônicas O Peão Poeta.



9.08.2021

O FRANCÊS QUE SAQUEOU O RIO

 Se o francês Jean François Du Clerc, com cerca de mil corsários, não conseguiu conquistar o Rio de Janeiro, em 11 de setembro de 1710, e ainda acabaria assassinado na prisão, um ano depois a situação seria bem diferente. Outro corsário francês, René Duguay-Trouin, chegava à cidade com 17 navios (na verdade foram 18, pois no caminho os franceses obrigaram a tripulação de um navio inglês a seguir com eles) e cerca de 4 mil corsários. Duguay-Trouin rompeu as defesas da Baía de Guanabara e invadiu o Rio, apoiado por uma forte neblina, no dia 12 de setembro de 1711, há 310 anos.

Apesar do bombardeio das fortalezas e navios de guerra portugueses, os franceses foram avançando até se estabelecerem na Ilha das Cobras (exatamente em frente ao atual Boulevard Olímpico), de onde partiriam para conquistar a cidade. "No dia 14 de setembro já estavam em terra todas as nossas tropas, num total de dois mil e duzentos soldados, e entre setecentos e oitocentos marinheiros, armados e experimentados, o que perfazia, incluídos os oficiais, guardas-marinha e voluntários, uma tropa de cerca de três mil e trezentos homens. Além disso, tínhamos ainda quase quinhentos homens atacados por escorbuto, os quais desembarcaram junto com os outros, e ao cabo de quatro ou cinco dias já estavam em condições de ser incorporados ao resto das tropas". ("Memórias do Senhor Duguay-Trouin", São Paulo, Imprensa Oficial-Editora UnB, 2003).
Após alguns dias de intensa batalha, a tropa portuguesa e os moradores da cidade a abandonaram após um grande bombardeio francês na noite do dia 20, acompanhado de intensa tempestade com muitos raios e trovoadas. O povo ficou em pânico, achando que os franceses realizavam um ataque geral, e fugiu da cidade levando o que podia em meio aos caminhos alagados. O governador Francisco de Castro Morais, e toda a administração da cidade, se refugiaram na Fazenda do Engenho Novo, dos jesuítas. Todos aguardavam, ansiosos, a chegada de uma imensa tropa que vinha de Minas Gerais, sob o comando de Dom Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho.
Duguay-Trouin já sabia da iminente chegada dessa tropa e, por isso, acelerou a negociação do pagamento do resgate, ameaçando destruir toda a área central do Rio de Janeiro, já que, além das centenas de canhões dos navios de guerra, os franceses dominavam todas as fortalezas. Dom Antônio chegou no dia 11 de outubro, com cerca de 6 mil homens de tropas regulares. Mas nada mais podia ser feito. O resgate da cidade já havia sido assinado, os franceses receberam 610 mil cruzados, 100 caixas de açúcar e 200 vacas, fora o que os corsários saquearam pela cidade. Duguay-Trouin devolveu o Rio de Janeiro e embarcou de volta com seus corsários no dia 13 de novembro, incluindo aí centenas de franceses da expedição de Du Clerc que estavam presos na cidade.
Considerado culpado pela perda da cidade, o governador Francisco de Castro Morais foi degredado para a Índia, só conseguindo o perdão quase 30 anos depois. O Rio de Janeiro passou a ser governado por Dom Antônio de Albuquerque. Já a volta dos corsários para a França foi cheia de contratempos, com imensas tempestades pelo caminho. O navio Aigle naufragou na ilha de Caiena, quando estava ancorado, mas a tripulação conseguiu escapar. Já os navios Magnanime e Fidèle naufragaram em alto mar, com a morte de quase 1200 franceses, incluindo Monsieur de Courserac, o primeiro a forçar a barra na Baía de Guanabara. Junto com o Magnanime, foram parar no fundo do mar boa parte das mercadorias trazidas do resgate e 600 mil libras em ouro e prata.

8.24.2021

O ADVOGADO DOS INCONFIDENTES

 Um importante personagem da Inconfidência Mineira nasceu no Rio de Janeiro, em 1752. José de Oliveira Fagundes era filho do comandante José Ferreira Lisboa e de Firmina Inácia de Oliveira. Aos 20 anos, foi estudar Direito em Coimbra, tendo concluído o curso em 1778. Trabalhou em Lisboa e depois voltou ao Rio de Janeiro, exercendo a profissão em varas cíveis e criminais. No dia 31 de outubro de 1791 foi nomeado, pela Alçada, advogado da Santa Casa de Misericórdia para defender os réus da Inconfidência Mineira, prestando juramento nessa data. As duas devassas já estavam reunidas numa só. Sua admissão na Santa Casa ocorreu em 1790 e ele ganharia 200 mil réis pelo serviço.

Tanto tempo depois das prisões, só agora era concedido o direto de defesa aos réus. O advogado não perdeu tempo: começou a dar vistas ao sete imensos volumes, com todos os interrogatórios, e apresentou os primeiros embargos de defesa no dia 23 de novembro, com 121 parágrafos referentes a 29 réus vivos e três falecidos. Fagundes foi ajudado por outros advogados na leitura dos autos, mas seus nomes não foram registrados.
Sobre Tiradentes, Fagundes estabelece sua defesa afirmando que o alferes era conhecido "por loquaz, sem bens, sem reputação, sem crédito para poder sublevar tão grande número de vassalos quanto lhe seriam indispensáveis para o imaginário levante contra o Estado", e ainda cita "o caso que se fazia em toda aquela capitania da lubricidade da sua língua, basta notar a indiscrição, e nenhum acordo com que, sem escolha de tempo e de pessoas, e de lugar proferia as quiméricas ideias que a sua libertinagem lhe subministrava". (Tiradentes - a defesa, Paulo Duque (org.) O advogado ainda retirava o crédito da própria confissão de Tiradentes, provocado, segundo ele, por ser o alferes um homem "desesperado por ter sido preterido quatro vezes, parecendo-lhe que tinha sido muito exato no serviço (...)". (Tiradentes - a defesa, Paulo Duque (org.)
A defesa seria difícil. Os interrogatórios se sucediam e os réus, presos em calabouços terríveis, iam descrevendo todos os detalhes do movimento, fornecendo todo o material necessário para os juízes indicarem as culpas de cada um. Mesmo assim, Fagundes apresentou seus embargos, escritos de forma bem detalhada, inclusive de Domingos Fernandes da Cruz, que apenas emprestou a casa a Tiradentes, sem ter a menor ideia do que se tratava, e também estava preso. "(...) o réu Domingos Fernandes da Cruz, em cuja casa foi preso o réu Xavier ignorava qual era o seu delito, e o recolheu em sua casa a instâncias de Inácia Gertrudes de Almeida, a quem também o dito réu enganou (...)". (Tiradentes - a defesa, Paulo Duque (org.)
A defesa estava lançada, agora era esperar o resultado do imenso trabalho de Fagundes. Em homenagem a este grande conhecedor das leis, desde 1989, uma das salas da Procuradoria Geral da República, em Brasília, tem o nome de José de Oliveira Fagundes. E no prédio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) há uma placa com o nome do advogado.

* Este texto faz parte do livro "Tiradentes Carioca", meu e de Ronaldo Morais.



7.17.2021

O NOSSO 11 DE SETEMBRO

 A data de 11 de setembro costuma ser lembrada por dois acontecimentos dramáticos de alcance mundial: o ataque às torres gêmeas, em Nova York, em 2001, e o golpe militar no Chile, em 1973.

Já aqui, no Rio de Janeiro, também tivemos o nosso 11 de setembro, bem mais antigo, mas também com altas doses de violência e dramaticidade. Foi nesta data, em 1710, que o francês Jean François Du Clerc, acompanhado de cerca de mil corsários, invadiu a cidade do Rio de Janeiro pela praia da Barra de Guaratiba, no lado oeste da cidade. O objetivo? Conquistar e saquear a cidade e depois dividir o butim, o valor do resgate, entre os corsários e os que apoiaram a invasão. O corsário, ao contrário do pirata, tinha autorização do rei para suas investidas (no caso de Du Clerc, do rei Luis XIV, o Rei Sol, ícone do modelo político conhecido como Absolutismo) e apoio financeiro de companhias e nobres abastados.
Du Clerc tentou invadir o Rio de Janeiro pela Baía de Guanabara, mas foi rechaçado, com seus seis navios, pela Fortaleza de Santa Cruz. Foi, então, navegando pelo litoral da cidade até chegar a Angra dos Reis, que foi duramente bombardeada e teve algumas fazendas saqueadas. Quatro escravos fugidos de uma dessas fazendas informaram aos franceses que a praia da Barra de Guaratiba seria um bom ponto de desembarque para se atingir o centro do Rio de Janeiro. Os franceses seguiram o conselho e desceram na praia no dia 11 de setembro.
Após oito dias de dura caminhada pelas montanhas (e com direito a alguns saques, como na Fazenda do Camorim), chegaram ao centro do Rio, onde já eram esperados sem o menor pingo de hospitalidade. Numa violenta batalha que durou um dia inteiro, com muitos mortos e feridos de ambos os lados, os invasores se renderam. Os franceses sobreviventes foram distribuídos pelas prisões e Du Clerc ficou preso no Convento dos Jesuítas, no já extinto Morro do Castelo, sendo depois transferido para uma casa, na esquina da rua da Quitanda com (também já extinta) rua General Câmara, onde, apesar de estar guardado por várias sentinelas, foi assassinado no dia 18 de março de 1711, um crime que nunca foi solucionado.
Ainda em 1711, um outro corsário, René Duguay-Trouin, chegava ao Rio com a mesma intenção de Du Clerc, mas desta vez com 18 navios e cerca de seis mil corsários franceses. Mas essa história deixo para contar outro dia.
* Esta história é contra no livro A invasão francesa do Brasil, meu e de Ronaldo Morais.


6.23.2021

CURSO DE HISTÓRIA DA ZONA OESTE CARIOCA

 O Curso Livre de História da Zona Oeste Carioca será ministrado pelo jornalista e escritor André Luis Mansur de forma on-line e ao vivo, em quatro aulas, terças, das 19h às 21h, abrangendo a região entre Deodoro e Sepetiba. Os alunos vão lidar com temas importantes do passado da região, como a Fazenda de Santa Cruz, a Fábrica Bangu, a invasão de corsários franceses em Guaratiba, além de personagens importantes, como Freire Alemão e Padre Miguel, entre muitos outros assuntos.

O curso será baseado nos livros da trilogia O Velho Oeste Carioca, publicados por André Luis Mansur.
Início: 13 de julho - terça
Encontros: 13/ 20/ 27 de julho e 10 de agosto
Terça - 19 às 21h
Investimento: 80,00
Informações: 981772039
Ideias Espaço Criativo



6.22.2021

A CASA DA INFÂNCIA


Portão do número 84 da rua Sirici, em Marechal Hermes, onde morei, e fui muito feliz, de 1969, quando nasci, até 1990, quando me mudei para Campo Grande. É uma vila de 6 casas e morávamos no número 6.- em cima tem mais 2 apartamentos. Fica bem pertinho do Largo de Marechal e da Estação de Trem.

Quando entreguei as chaves para o senhorio, "seu" Hélio, em um dia cheio de saudades, o último objeto retirado da casa foi a minha boa e velha Monark Monareta, com a qual vim pedalando para Campo Grande. Escrevi uma crônica sobre isso para o jornal O Dia. O link é este:

https://odia.ig.com.br/opiniao/2018/10/5579738-andre-luis-mansur-baptista-de-marechal-a-campo-grande.html?fbclid=IwAR0EuGP_qtCeDmCmFMGx9-LDPLxG1UIzOtap4T1NPLWUHOat5d8qxAtrgNs

5.20.2021

NOMES DE BAIRROS CARIOCAS E SUAS LENDAS

 NOMES DE BAIRROS CARIOCAS E SUAS LENDAS, ALGUMAS ATÉ BEM CONVINCENTES

Por André Luis Mansur

 

        Nomes de bairros sempre despertam curiosidades. E o mais interessante é que, ao lado da versão, digamos, oficial, há sempre a lenda, a explicação mais folclórica, que ficou na tradição oral durante décadas, às vezes séculos, e muitas vezes são as mais interessantes. É o que acontece com o nome da Ilha de Guaratiba e de outros bairros aqui da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

        Quando comecei a conhecer a região, lá pelos anos 80, estava em Campo Grande e vi um ônibus com o destino "Ilha". Meu primeiro pensamento foi que seguia para a Ilha do Governador. Mas depois vim a descobrir que não havia, e não há até hoje, um ônibus direto entre Campo Grande e Ilha do Governador. Que ilha era essa então? Aí me explicaram que era a Ilha de Guaratiba. Ah, tudo bem, Guaratiba tem um amplo litoral, deve ser alguma das ilhas que estão ali por perto. Mas que nada. A Ilha de Guaratiba fica é em terra mesmo, foi o que me disseram, e seu nome tinha a ver com um tal inglês que morou lá fazia muito tempo. Um tal de William.

       Reza a lenda, e aí vem a versão folclórica, que um inglês chamado William, que teria vindo com a Corte portuguesa, em 1808, foi morar em Guaratiba e aí, quando as pessoas iam para lá, diziam: "Vai aonde? - Para a fazenda do seu William. - Que William? - O William de Guaratiba". E aí o tal William de Guaratiba, com o tempo, e bota tempo nisso, foi mudando até chegar ao nome atual de Ilha de Guaratiba.

        Bem, como eu disse, esta é a versão folclórica. A outra explicação diz que o nome Engenho da Ilha já existia bem antes da chegada da Família Real e não tem nada a ver com inglês nenhum, e sim com a grande quantidade de rios e canais da região, que, quando enchiam (e lembremos que os rios tinham muito mais água do que hoje), deixavam uma grande porção de terra, mais elevada, cercada de água por todos os lados, a tal Ilha de Guaratiba. Como não sou dono da verdade, nem pretendo ser, deixo para cada um escolher a sua versão - eu escolho esta última.


                         Fachada da sede do Ilha Futebol Clube


         O mesmo acontece com Realengo, que para muitos é a abreviatura de um engenho, o Real Eng., que com o tempo passaria a ter o nome atual. A outra versão, na qual eu acredito, é que toda aquela região fazia parte das Terras Realengas, ou seja, terras que eram do Reino de Portugal na época da colônia e onde não se podia construir nada particular. Houve algumas invasões de fazendeiros, é verdade, mas no século XIX, quando o governo imperial resolveu transformar aquela região em área militar, ela estava praticamente vazia de construções particulares, justificando a origem do nome (embora alguns conflitos tenham ocorrido nas Terras Realengas no passado exatamente por disputas de áreas de fazendas).

                                                                    

                                                                 Brasão de Realengo

         O bairro de Inhoaíba, entre Campo Grande e Cosmos, também tem duas explicações para a origem de seu nome. Tem a de origem indígena, Nhu (campo) Ahyba (ruim), e a que fala dos escravos de uma fazenda que chamavam o seu dono de "Sinhô Aníbal", ou "Inhô Aníbal". Confesso que neste caso ainda não sei em qual acredito, mas tenho uma tendência a dar mais crédito à versão da origem indígena.

    


                             Inhoaíba - Instituto Ana Gonzaga


     Também o bairro de Vila Valqueire, já ali entre as Zonas Norte e Oeste, possui uma explicação bem curiosa sobre o seu nome, a de que teria existido uma fazenda em um tal "V Alqueire" ("V" é "cinco" em algarismo romano, seria um "quinto alqueire"), mas neste caso não há dúvida, o nome vem mesmo do fazendeiro Antônio Fernandes Valqueire, dono de um engenho na região no século XVIII. Mesmo assim há quem acredite no tal "quinto alqueire".    



                   Rua das Verbenas, na Vila Valqueire, década de 30


        Dúvidas à parte, esta e outras versões sobre os nomes de vários bairros da cidade sobreviveram até hoje, mostrando a força da tradição oral, que se muitas vezes está distante da verdade registrada em documentos oficiais, ela não deixa de ter o seu valor ao despertar a curiosidade dos moradores pela origem dos nomes dos seus bairros. Como já falei aqui neste espaço, conhecer a História do seu bairro é fundamental para se criar afinidade com ele e saber o que reivindicar em melhorias e investimentos. E saber a origem do nome do bairro, da rua ou do logradouro, é o primeiro passo para isso. Afinal, quem não fica curioso ao ouvir falar em nomes como Curral Falso, Manguariba, Marapicu, Paciência, Viaduto dos Cabritos, Buraco do Faim, Esquina do Pecado, Marco 7, Caminho do Vai e Vem e tantos outros que enriquecem a História, "oficial" ou não, da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

* Este texto faz parte do meu livro "Crônicas Históricas da Zona Oeste Carioca"







5.02.2021

CENTRO DO RIO

 


Por André Luis Mansur 

Apesar de ter sido criado em Marechal Hermes, nasci no Centro do Rio, na Avenida Henrique Valadares, lá no distante ano de 1969. Vim ao mundo no Hospital do Iaserj, na época Iaseg, hospital que muito mais tarde Sérgio Cabral mandaria demolir.

Passaria a frequentar o Centro do Rio só a partir dos 15 anos, levado por meu saudoso pai, Wilson Baptista, e lembro que o primeiro lugar por onde andamos foi a Avenida Marechal Floriano, que se tornaria um dos meus espaços preferidos por lá. A avenida de prédios históricos, como o Colégio Pedro II, o Palácio do Itamaraty, a Igreja de Santa Rita e a sede da Light, que hoje é um Centro Cultural.

Mas a Marechal Floriano também é a Avenida da Livraria Elizart, que está resistindo bravamente à pandemia e ao esvaziamento do Centro, assim como a Folha Seca, do Rodrigo Ferrari  (funcionando em horário reduzido, de segunda a sexta, das 11h às 16h); da Leonardo da Vinci, do Daniel Louzada; da Blooks, da Elisa Ventura; da Travessa; da Casa da Árvore e dos muitos sebos, lugares que eu passaria a frequentar com assiduidade, incluindo aí o mais recente deles, o Sebo X, na Praça Tiradentes, do Jocemar Barros e do Paulo-Roberto Andel.

Todos resistindo e acreditando no renascimento do Centro, que teve boa parte das lojas falidas com a pandemia e também  boa parte dos escritórios trabalhando em home-office - muitos escritórios, aliás, vão continuar assim, pois seus gestores perceberam que fica bem mais barato do que pagar os caros aluguéis e condomínios da região. 

                        Rua Primeiro de Março


Mas a recuperação do Centro do Rio (após a pandemia, é claro) vai precisar passar por uma volta às origens, à época em que a região abrigava não só trabalhadores, como hoje, mas também moradores, que se espalharam por suas ruas abertas em meio a pântanos e gangues desde seus primórdios, após ocuparem o Morro do Castelo, em 1567. A Reforma Passos, no início do século XX, afastou os moradores da região central da cidade, mas agora eles precisam voltar, é a única saída para revitalizar de novo a região.

Vai ser difícil, sem dúvida. Mas acredito que aquela região, que derrotou o corsário Du Clerc, em 1710, mas seria derrotada e saqueada pelo corsário Rene Duguay-Trouin, no ano seguinte, entre tantos conflitos e perrengues ao longo de sua História, vai dar a volta por cima. A força do Centro do Rio está na sua mistura, lá se encontram moradores dos subúrbios, da Zona Sul, da Baixada, de outras cidades e estados, uma dinâmica que não se encontra em nenhuma outra parte da cidade e que, acredito, é o que vai fazer a região se reinventar. Mas, como eu disse, vai ser difícil. O cenário atual é  triste, mas que possamos ter (talvez no ano que vem, quem sabe?), uma cena parecida como esta da foto que abre o texto, quando lancei meu romance "A Praça" na Folha Seca, um pouco antes do Carnaval de 2019, um domingo de muito sol, samba e aglomeração.