9.30.2019

VINÍCIUS E AS CUTIAS


No excelente documentário "Vinicius", de Miguel Faria Jr., Toquinho conta que certa vez Vinicius de Moraes o chamou para ver algo que o deixou impressionado: no quintal de uma casa, animais de diferentes espécies conviviam harmoniosamente, uma situação que o poeta nunca presenciara em seus anos de diplomacia. A mesma observação atenta, e impecavelmente irônica, pode ser aplicada a um outro local bem no centro do Rio de Janeiro.
Ao lado da avenida Presidente Vargas, uma das mais movimentadas da cidade, o Campo de Santana chama a atenção não apenas pelas muitas árvores que abriga, além de dois lagos e uma gruta, mas principalmente por um roedor de tamanho médio que está por todas as partes do campo: a cutia. Sempre de bom aspecto, afinal são bem alimentadas pelos funcionários, elas dividem espaço com gatos, gansos, patos e até pavões, numa demonstração clara de que a convivência entre as diferenças é uma etapa já superada pelos animais ditos irracionais há muito tempo.
Mas quem passa por ali todos os dias (e é muita gente) e se admira do que vê em volta, vai ficar muito mais impressionado se conhecer a rica história daquele espaço que se originou de um outro campo, este muito maior, o de São Domingos, onde ficava a igreja de São Domingos, já destruída e que pertencia a uma irmandade de negros escravos. Já havia uma igreja de outra irmandade de escravos, a de São Rosário e São Benedito, que até hoje está na rua Uruguaiana. Uma terceira surgiria, a de Santana, mas sem igreja ainda os fiéis pediram e conseguiram que a imagem da santa fosse cultuada na igreja de São Domingos, uma prática comum entre irmandades no Brasil colonial. Divergências, no entanto, provocaram a expulsão dos fiéis e da imagem de Santana e a irmandade então solicitou um terreno próprio, no que foi atendida. A igreja foi construída próximo ao morro da Conceição, em 1735, na altura onde é hoje o prédio da Central do Brasil.
À medida em que a cidade se expandia, toda aquela região começou a ser urbanizada, com a formação de ruas e praças, já que a área era constantemente alagada. No início do século XIX, o Conde de Resende, último vice-rei do Brasil, mandou aterrar o Campo de Santana, que na época se estendia por toda a área da atual avenida Presidente Vargas em frente à atual Central do Brasil. Com a melhoria do terreno, surgiram as festas do Divino de Santana, ou Folias do Divino, que antes do carnaval eram as festas preferidas do carioca.
Em 1811, foi iniciada a construção de um quartel no campo, ao lado da igreja. Considerado muito feio, o edifício abrigou o 2º Regimento de Linha em 1814, mesmo sem estar concluído. Depois foi reformado e ocupado pela Secretaria de Guerra durante todo o Segundo Reinado. A partir da República seria a sede do Ministério da Guerra até meados do século XX, quando enfim foi destruído, dando lugar ao Palácio da Guerra, atual sede do Comando Militar do Leste, ao lado da Central do Brasil.
Foi no Campo de Santana que D. Pedro I protagonizou o Dia do Fico e recebeu, em 12 de outubro de 1822, já após a independência, o título de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, no amplo balcão do pavilhão construído em 1818 e que explodiu em 1841 quando estava repleto de barris de pólvora e fogos de artifício armazenados para a festa de coroação de D. Pedro II, matando o organizador da festa. O reflexo do sol no vidro de um lampião teria sido o estopim da explosão. Foi durante esse período que o campo passou a se chamar Campo da Aclamação.
O Campo também abrigou o Museu Real, fundado por D. João VI em 1818, na casa do Barão de Ubá, que depois seria a sede do Arquivo Nacional e que ainda existe, na esquina com a rua Visconde do Rio Branco. O Museu abrigou uma grande quantidade de espécies da flora e da fauna, além de um rico acervo mineral, sendo depois transferido para o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista.
O gradeamento é de 1873, obra de François Marie Glaziou, um botânico francês que trabalhou em vários jardins públicos da Corte. O que ele não poderia imaginar é que quase 140 anos depois sua obra serviria de passagem para que várias pessoas, na maioria idosas, levassem quilos e mais quilos de ração para os muitos gatos do campo à noite. É nessa hora que surge a única iminência de conflito entre os animais do local, pois os fornecedores da ração acabam tendo de afastar os patos que, sorrateiramente, vão se aproximando, de olho na ração dos gatos. Já as cutias aproveitam a redução do barulho dos carros e dormem a sono solto no campo onde elas representam o papel principal durante o dia.

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