3.22.2010

JOÃO ANTÔNIO


Como conhecer um grande escritor sem se dar conta disso.

Foi no final de 1993. Fazia meu estágio de jornalismo na TVE do Rio de Janeiro e de vez em quando mostrava meus textos de ficção para alguém, podia ser algum colega de profissão ou um convidado do programa “Sem Censura”. Numa dessas ocasiões, dei de cara na redação com o escritor João Antônio, que havia acabado de ser entrevistado no citado programa, na época ainda comandado por Lúcia Leme.

Já tinha ouvido falar nele e sabia que era um grande contista, dos nossos melhores, mas que andava muito mal divulgado. O problema, no entanto, é que não tinha lido nada dele. Mesmo assim, ostentando aquela famosa “casa de peroba”, um grau acima da “cara de pau”, e aproveitando que ele estava bem relaxado no ambiente congelado da redação, fui lá, me apresentei e perguntei se ele poderia dar uma olhada nos meus textos, já achando que iria fazer o que todos faziam, uma pequena mesura social e guardar o envelope pardo com as folhas datilografas, prometendo entrar em contato – o que pouquíssimos fizeram.

Qual não foi minha surpresa quando ele me convidou, como se fôssemos amigos de longa data, a bater um papo. Saímos da redação, na avenida Gomes Freire, e fomos até a esquina da rua da Relação, em frente ao Hotel Marialva, onde havia um boteco daqueles bem tradicionais e que nada tem a ver com os espaços estilizados de hoje, caríssimos e que entram na moda sob a alcunha de butiquins sem sequer ostentarem um singelo ovo cor de rosa.

Da longa conversa, entre cervejas (para mim) e doses de ypioca (para ele), ficaram muitas e boas lembranças. O texto? Deu uma rápida olhada e me disse uma frase emblemática: “Leia os russos. Se quiser escrever sobre o povo, leia os russos”. Quando foi embora, de ônibus, fiquei com a certeza de ter encontrado um ser humano especial, que unia simplicidade, muita cultura e um amor incondicional pelos livros e pela gente humilde, não à toa que seu grande mestre na literatura era Lima Barreto.

Mantivemos o contato, seja por telefone ou ao vivo, pois chegamos a trabalhar juntos dois anos depois no jornal “Tribuna da Imprensa”, ele como cronista. Numa das últimas ligações, em 1996, João me pediu para comprar edições antigas de livros dele, que naquele momento eu já conhecia e me apaixonara, me familiarizando com vários personagens ´viradores´ das noites, como Malagueta, Perus e Bacanaço, Paulinho Perna Torta, Meninão do Caixote e Joãozinho da Babilônia. Comprei uns cinco livros em sebos do centro da cidade e marcamos o encontro no apartamento dele, na praça Serzedelo Correia, em Copacabana (bairro sempre presente na sua obra).

Era a minha primeira visita. João morava sozinho e o que me chamou logo a atenção foi a quantidade de móveis antigos e pesadões no amplo apartamento, o que me passou uma sensação de melancolia. Obviamente, conversamos bastante. Mostrei uma crônica, que ele leu e gostou, e depois fomos tomar um café na praça. Antes, ele quis me pagar pelos livros, o que recusei. Em troca, me presenteou com uma edição de “Patuléia – “, coletânea de contos seus lançada há pouco tempo pela editora Ática. Dizia a dedicatória: “Ao André Luis Mansur, que se interessa pelas coisas brasileiras. Um abraço do João Antônio. Copacabana, 1º de agosto de 1996".

Conversamos mais um pouco e fui para casa, mas um pouco preocupado devido a um acesso de espirros que ele teve e que me disse não ser nada demais. Eu trabalhava na rádio Brasil, da LBV, como redator. Dois meses depois, com uma profunda tristeza, redigi a notícia da morte do escritor João Antônio, um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, encontrado morto em seu apartamento em Copacabana após passar mal. Nem preciso dizer que guardo o livro com a dedicatória entre os meus bens literários mais valiosos, uma despedida sem dizer adeus.

Pedra de Guaratiba, 11 de março de 2010, um pouco depois do pôr do sol.

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3.01.2010

RIOS ANTIGOS


Um dos principais sintomas da degradação ambiental de uma cidade ocorre quando seus rios passam a ser chamados de valões. Aqui no Rio de Janeiro isso ocorre em todos os bairros e o mais irônico é que a cidade carrega um rio no nome, conseqüência do equívoco dos primeiros navegantes, que, ao chegarem aqui em 1º de janeiro de 1502, confundiram a Baía de Guanabara com a foz de um grande rio. Como estávamos em janeiro, Rio de Janeiro.

Já o rio que deu nome aos nascidos na cidade, o Carioca, é hoje quase totalmente canalizado. Tem apenas um pequeno trecho visível no Largo do Boticário, no Cosme Velho, e desemboca de forma muito mal-cheirosa na Praia do Flamengo. Era às margens dele que o fidalgo português Martim Afonso de Souza morava, em 1531, numa casa de pedra, origem do termo cari-oca, dado pelos indígenas e que significa ´casa de branco´.

Apesar da lastimável situação atual, os rios antigos já foram o principal meio de transporte desta cidade, já que as poucas trilhas que existiam eram perigosas e cheias de obstáculos. Assim, rios como o Maracanã, o Comprido, o Carioca, o Andaraí, o Piraquê, o Meriti, o Piraquara, o Guandu e tantos outros foram responsáveis pela maior parte da movimentação de cargas e passageiros da cidade por muito tempo, sempre atrelados a ancoradouros e portos que já não existem, como os de Irajá e Maria Angu, fundamentais para o escoamento de boa parte da produção agrícola do subúrbio carioca.

Destes tempos de grande importância para o desenvolvimento da cidade só ficaram mesmo os nomes dos rios - boa parte subterrâneos - e os que não passaram por este processo ficam expostos a todo tipo de degradação, não apenas do esgoto jogado in natura nas suas águas, que nascem limpas e cristalinas nas serras, mas também à falta de educação dos moradores próximos que jogam todo tipo de porcaria em suas águas, de sacos plásticos a cadeiras, sofás e até geladeiras velhas. Um projeto que deu certo aqui na cidade é o dos ´guardiões dos rios´, realizado por pessoas que recebem um salário para não apenas manter o leito do rio sempre limpo mas também as margens. O trabalho recebe o apoio de jardineiros, também da prefeitura, que estão transformando alguns rios em verdadeiras alamedas, com plantas e árvores bem diversificadas. Vendo o trabalho bem feito e o cuidado com que o rio é tratado, a quantidade de lixo jogada neles depois que o projeto começou diminuiu consideravelmente.

Mas fica aqui uma sugestão, que já compartilho com alguns amigos: por que não chamar o rio pelo nome? Nos mapas da prefeitura, é fácil identifica-los e alguns têm até plaquinhas. Não que isso vá lá mudar muita coisa, mas só de não chamá-los de valão, nome que simboliza sujeira e podridão, quem sabe eles não passem a ser mais respeitados? Afinal, não dizem que o sujeito só passa a existir quando é batizado?
Eu não sei não, mas depois que passamos a chamar o rio perto da minha casa pelo nome dele, Cabuçu-mirim, afluente do Cabuçu, que desemboca no Piraquê e deságua na Baía de Sepetiba (este poderia ser o seu ´nome completo), já percebi que duas garças aparecem por lá todas as manhãs e ficam se refestelando num banco de areia que surgiu milagrosamente no meio do rio.

* Imagem atual do Rio Carioca, na altura do Largo do Boticário.

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