12.26.2014

VOU TE CONTAR - 20 HISTÓRIAS AO SOM DE TOM JOBIM

          


          Lançado para marcar os 20 anos da morte de Tom Jobim, ocorrida em 8 de dezembro de 1994, "Vou te contar - 20 histórias ao som de Tom Jobim" (Rocco) reúne contos de autores contemporâneos baseados em músicas do grande compositor. É uma homenagem bem apropriada, pois, como diz Ruy Castro na contracapa, Tom respeitava a palavra tanto quanto as notas musicais, e o que vemos aqui é uma reverência feita, com muito talento, a um dos grandes nomes da cultura brasileira.
        Organizado por Celina Portocarrero, o livro segue a ordem alfabética dos autores, de Adelice Souza a Vinicius Jatobá, que faz uma leitura original de "Águas de março", repleta de imagens poéticas espalhadas em um ritmo dinâmico. Já Adelice pontua seu conto com o primeiro verso de "Wave", Vou te contar, que inicia os parágrafos de uma história que mistura romantismo, praia e um amor estrangeiro que recebe o aval da rainha do mar. "Deixei os pés se molharem e a água nada ondulada lambia os joelhos e uma parte das coxas. E fiquei ali, ainda enxutos o sexo e o ventre, o olhar a pasmar-se no meio da secura fria. Agradecia, agradecia, agradecia".
     Entre Adelice e Vinicius circulam nomes como Claudia Nina,  Susana Fuentes, Lúcia Bettencourt, Marilia Arnaud, Angela Dutra de Menezes, Silviano Santiago, Henrique Rodrigues, Branca de Paula, Danielle Schlossarek e Mirna Brasil Portela, que faz de seu conto "Ligia" uma história de desespero dentro de um avião em turbulência, o clímax onde nada mais resta a não ser um surpreendente beijo na boca.
     O livro não traz as letras completas das músicas que inspiraram os autores, é uma opção editorial, o que de certa forma dá uma liberdade até maior para que os contos sejam, de fato, a recriação de cada canção de Tom Jobim. Assim, em alguns casos, não há, dentro do texto, nenhuma referência explícita à letra da canção que inspirou o conto, mas podemos observar, aqui e ali, um clima, um ambiente que nos remete à fonte daquela história.
        Homenagear um grande artista fora da sua área específica é sempre um risco de se "errar a mão", de se produzir algo completamente fora de contexto, mas não é o que se vê aqui. Os autores entraram no universo do compositor, acompanhados de uma edição caprichada e as belas fotos de Isabel De Nonno, que ilustram a capa e o início de cada conto.
       Como Vinicius de Morais, o principal parceiro musical de Tom, já disse numa canção, "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida", e é exatamente o que vemos aqui nestas pequenas narrativas, que também podem ser encontros repletos de acidez, como entre pai e filho que nunca se entenderam ("Fotografia", de Carlos Henrique Schroeder), um ex-casal com muitas arestas por aparar ("Você vai ver", de Antonio Carlos Viana), a mulher que aguarda, na melancolia de uma praia onde tudo mudou, o encontro acordado trinta anos atrás ("As praias desertas", de Marcelo Moutinho), ou a filha que resolve encarar o passado e rever o pai que abandonou a família ("Espelho das águas", de Monique Revillion).
         Menalton Braff, o autor mais experiente da coletânea, com seus 20 livros publicados e um prêmio Jabuti na bagagem, escreve um conto sobre a descoberta do amor, aquele amor que deixa "minha testa úmida, minhas mãos encharcadas, meus olhos mergulhados numa nuvem densa" e que pode, ou não, se materializar em um encontro (novamente ele). E é o amor que sustenta, de fato, boa parte das histórias, o amor de Tom Jobim pelas pessoas, pela natureza, pela arte, enfim, pelo seu querido Rio de Janeiro. "Dizem que a maior solidão é a de quem está no meio de uma multidão. Naquele momento, ele tinha certeza de que a maior solidão era aquela de quem tem dúvidas acerca do amor, estando ao lado da pessoa supostamente amada" ("Vivo sonhando", de Danielle Schlossarek).












11.24.2014

LADEIRA DA MISERICÓRDIA, O ÚLTIMO VESTÍGIO DO MORRO DO CASTELO


         São poucos os que reparam nela. Quase sempre guias turísticos levando grupos a conhecerem a História da cidade do Rio de Janeiro. Afinal, qual o interesse numa pequena ladeira que não leva a lugar nenhum? Mas a Ladeira da Misericórdia, perto da Santa Casa e da Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso, leva, sim, aos primeiros anos de ocupação da cidade, quando os portugueses transferiram o pequeno núcleo fundado, em  de março de 1565, no espaço entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, para o Morro do Castelo, em janeiro de 1567, após intensas batalhas contra os índios tamoios e os franceses.
  A ladeira é o que sobrou do morro, demolido na década de 1920, um projeto que surgira já no final do século XVIII, e atravessou o século XIX, movido por várias razões, entre elas a de que ele impedia a passagem dos ventos e a circulação do ar, o que agravava o quadro de doenças dos moradores da cidade. Além disso, sempre houve uma grande curiosidade sobre os possíveis tesouros escondidos nos subterrâneos do Morro do Castelo, tesouros que teriam sido guardados pelos jesuítas após a expulsão deles de Portugal e suas colônias pelo Marquês de Pombal, em 1759. O Colégio dos Jesuítas e a Igreja de São Sebastião, a primeira da cidade, ficavam no alto do morro.


  Os subterrâneos foram realmente encontrados, em 1905, durante as obras da Avenida Central, futura Avenida Rio Branco, mas, apesar de todo o rebuliço causado na cidade, nada de valor foi encontrado: apenas correntes de ferro, alguns documentos sem importância, ossadas e algumas cisternas. As passagens dos túneis foram, então, emparedadas algum tempo depois. O que sobrou do morro foi usado, principalmente, para a construção do Aeroporto Santos Dumont, ligando a Ilha de Villegagnon, usada pelos franceses que ocuparam a Baía de Guanabara a partir de 1555, ao continente.
  A destruição do morro começou na administração do prefeito Carlos Sampaio, usando, como principal argumento, a necessidade de se preparar a cidade para a Exposição Internacional de 1922, que traria delegações do mundo inteiro e iria comemorar os cem anos da independência do país. Com o apoio do governo federal, o trabalho começou, apesar dos protestos de muita gente, como o escritor Lima Barreto, que afirmou ser o projeto um desrespeito às tradições da cidade, um imenso gasto desnecessário de recursos, e ainda havia a questão dos moradores do morro, cerca de 4 mil pessoas que viviam lá, além dos monumentos históricos.
  Mesmo assim, a demolição foi feita e, em dois anos, quase todo o morro havia sido destruído, graças principalmente aos potentes jatos d´água instalados. Mas só no final daquela década toda a área onde ficava o histórico morro foi limpa, surgindo a Esplanada do Castelo, que ficaria deserta durante muitos anos, até construírem a Avenida Presidente Antônio Carlos e prédios importantes, como os ministérios do governo Getúlio Vargas, nos anos 40. O local até hoje é conhecido como Castelo, devido à fortaleza que ficava no alto do morro, que no início da ocupação da cidade era chamado de Morro do Descanso. Todo o trabalho de destruição foi exaustivamente registrado pelas lentes de Augusto Malta, o principal fotógrafo da cidade nas primeiras décadas do século XX.


  Os restos mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade, foram retirados da Igreja de São Sebastião, demolida junto com o morro, para a Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca, assim como alguns objetos religiosos. Já os 4 mil moradores ficaram alojados em barracões de madeira na Praça da Bandeira e depois alojados em vários lugares. A vidinha tranquila no morro, com suas muitas árvores, passarinhos, galinhas ciscando, um pouco do que era a vida no Rio de Janeiro antes das grandes transformações urbanas do prefeito Pereira Passos (1902-1906), ficaria mesmo no passado para aquela gente.
  A Ladeira da Misericórdia era um dos três caminhos do morro. Os outros dois eram a Ladeira do Carmo, no prolongamento da Rua do Carmo, e a Ladeira do Seminário (ou Ladeira da Ajuda), na Rua da Ajuda, perto da Cinelândia. A Rua da Ajuda ainda existe e é uma referência ao antigo Convento da Ajuda, destruído no início do século XX.


* (Fotos tiradas por Ronaldo Morais, que colaborou neste artigo, entre 1978 e 1986 - apenas a última, colorida, foi tirada por mim em 2014)

MEUS LIVROS:

- O Velho Oeste Carioca, volumes I e II (Ibis Libris)
- Fragmentos do Rio Antigo (Edital)
- A invasão francesa do Brasil -o corsário Du Clerc ataca o Rio de Janeiro por Guaratiba (Edital)
- A rebelião dos sinais (Edital)
- Manual do Serrote (Edital)
- O Peão Poeta (Edital)

9.12.2014

CAMPO GRANDE, SÍMBOLO DA VIDA RURAL CARIOCA

Artigo publicado por mim no site Rio 450 anos, do jornal O Globo, em 11 de setembro de 2014. Segue o link:



CAMPO GRANDE, SÍMBOLO DA VIDA RURAL CARIOCA

Cercado pelos parques florestais do Mendanha e da Pedra Branca, o bairro de Campo Grande tem suas origens no início da ocupação da cidade do Rio de Janeiro, quando os primeiros aventureiros partiram para a região que alguns séculos depois seria nomeada zona oeste da cidade. Já na passagem do século XVI para o XVII, eram doadas sesmarias, grandes porções de terras cujos donos tinham a obrigação de tornar produtivas, como a que o então governador do Rio de Janeiro, Martim de Sá, doou a Lázaro Fernandes e Pero da Silva, “moradores nesta cidade e suas mulheres e filhos, que lhes é necessário terras para suas lavouras e para fazerem eles e seus filhos fazenda e não tem nenhumas no Campo Grande”.

Na Serra do Mendanha, onde existe um vulcão extinto, é que foram plantadas em larga escala pela primeira vez mudas de café, levadas da Fazenda do Capão do Bispo, cuja sede ainda existe, no subúrbio. Só depois é que o café iria se espalhar pelo Vale do Paraíba. Também na mesma serra, nasceu, em 1797, aquele que seria um dos maiores botânicos brasileiros, Freire Alemão, descobridor de centenas de espécies de plantas. Do outro lado do bairro, a Serra do Rio da Prata ainda abriga um pouco da vida rural que dominou a paisagem da região durante séculos, com agricultores levando suas produções no lombo dos burros, a pracinha ajardinada e a igreja na frente, além do coreto e a bica tombados, símbolos de uma época em que os lavradores só iam ao centro do bairro para vender suas safras e receber o dinheiro no Café e Bar do Lavrador, que não existe mais e era uma espécie de “banco” que movimentava a vida rural na região.

Também era do centro do bairro que saíam os bondes, inaugurados no final do século XIX e que fizeram parte da paisagem campograndense até 1967, deixando saudades e muitas memórias nos moradores mais antigos. Além da linha Campo Grande-Rio da Prata, havia também as que iam para Santa Clara, Ilha de Guaratiba e Pedra de Guaratiba. Hoje, desta época de um transporte mais romântico e ecologicamente correto, só restou como lembrança a antiga Oficina de Manutenção dos Bondes, na Estrada do Monteiro, que é utilizada pela Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro.

Também outro símbolo forte do bairro, presente inclusive em algumas esculturas na área central, foi a laranja, principal produção agrícola da região entre as décadas de 1930 a 1950, embalada em imensos barracões e origem da riqueza de muitos fazendeiros que, após a decadência da produção, começaram a lotear as fazendas, incrementando o crescimento populacional do bairro, que hoje já atinge níveis de saturação.

Apesar disso, e do trânsito cada vez pior, o bairro ainda mantém traços da vida rural e tem como uma de suas principais características a hospitalidade de seus moradores, muitos deles “emprestados” de outros bairros, como eu, ou de famílias quatrocentonas, já que a Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, nome da Igreja-Matriz que fica numa pequena elevação no centro do bairro, é de 1673, quando o Campo Grande era realmente uma imensa área que se estendia da Fazenda de Santa Cruz às Terras Realengas.