4.07.2010
DUZENTOS ANOS DE ENCHENTES
Por que uma tragédia precisa se repetir indefinidamente? O temporal que provocou o caos no Rio de Janeiro, com mais de 200 mortes, carrega um elemento ainda mais dramático, pois está perto de se completar 200 anos uma enchente devastadora que assolou a cidade entre os dias 10 e 17 de fevereiro de 1811 e que ficou conhecida como as “águas do monte”, pois a chuva descia dos muitos morros do centro do Rio e alagava tudo, provocando deslizamentos, desmoronamentos e muitas mortes.
De lá para cá, pelo visto nada mudou. Quer dizer, mudou para pior, pois a cidade se alastrou, sem nenhum planejamento urbano, e hoje apresenta uma situação para a qual não vejo solução, da mesma forma que em São Paulo as enchentes do Tietê vão continuar provocando o caos na cidade.
Nas “águas do monte”, parte do extinto morro do Castelo, berço da cidade, desmoronou, levando junto muitas casas. As igrejas da cidade acabaram acolhendo os muitos desabrigados, por ordem do príncipe D. João, e o principal meio de transporte na cidade acabou sendo a canoa, herança dos indígenas (chegou a haver uma batalha de canoas na Baía de Guanabara na época da guerra entre portugueses contra franceses e tamoios pela conquista da cidade) e que encontra sua referência nas balsas dos bombeiros hoje em dia para tirar gente de ônibus, nas pranchas de surfe e até nos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, que invadiram a rua e serviram de condução para quem queria fugir das enchentes.
Segundo conta o importante historiador Vieira Fazenda, citado por José Antônio Nonato e Núbia Melhem Santos no excelente livro “Era uma vez o morro do Castelo”, começou a chover torrencialmente às 11 da manhã do dia 10 e “a borrasca, longe de amainar, continuou incessante durante sete longos dias de verdadeiro suplício para os habitantes desta heróica e leal cidade”. As ruas, assim como hoje, viraram “caudalosos rios”, o Campo de Santana se transformou em uma grande lagoa e muita gente morreu soterrada nas casas que ruíram com a grande massa de terra que desceu do morro do Castelo, principalmente as casas do antigo Beco do Cotovelo, na parte do morro que ficava defronte à Ilha das Cobras.
Uma canção muito popular no século XIX guardou na memória dos cariocas a tragédia de 1811. Dizia:
- Vem cá Bitu! Vem cá Bitu!
Vem cá, vem cá, vem cá...
- Não vou lá, não vou lá, não vou lá,
Tenho medo de apanhar!
- Cadê o teu camarada?
- Água do Monte o levou...
Não foi água, não foi nada,
Foi cachaça que o matou.
Registrada por Santa Ana Nery, a letra de “Vem cá Bitu!” deve ser acompanhada pela melodia da cantiga de roda “Cai, cai, balão” e Bitu, segundo conta Vieira Fazenda, parece ter existido mesmo. Teria sido um dos mortos entre as casas soterradas pelo morro do Castelo.
Sua triste cantiga, pelo visto, ecoa até hoje entre os escombros desta cidade que não consegue absorver as tais intempéries da natureza.
- Se puder, veja também meus outros blogs:
www.criticasmansur.blogspot.com
www.manualdoserrote.blogspot.com
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22 comentários:
Esta das "enchentes" tem muito a ver com a dos 'valões' . Eu, também, tenho a esperança de mudanças de atitudes não só da autoridades mas. também, da população com o jogar lixo na rua.
Um senhor desconhecido com quem falei, na semana passada, por jogar papel de bla na rua, na Rodoviária, deve estar se lembrando de mim.Abraços
Matusa.
Tem tudo a ver mesmo, Matusa. Agora mesmo acabei de ver um sujeito jogar papel na rua. E se for reclamar, o cara ainda ´se acha nos seus direitos´. Taí o resultado.
Grande abraço!
E enquanto isso o Carioca continua levando tudo na galhofa. Ontem vi gente na Zona Sul com prancha surfando naquela água imunda...
Os mais sérios acham logo os culpados. Neste caso, o GOVERNO. O sempre onipresente governo é culpado e responsável por tudo. O que é de se esperar de uma sociedade infantilizada igual ao Brasileiro.
E fica assim. Enquanto alguns absorvem as desgraças como munição para novas piadas, outros transferem a culpa e vamo que vamo...até a próxima chuva...
É o que o grande Çábio, Lula disse: "Quando desgraça acontece, acontece"
Daqui a pouco vem a Copa do Mundo, Sal, e tudo vai ´por água abaixo´, literalmente. O pior é que aqui nem na desgraça se aprende, aparecem sempre as mesmas tristes e dramáticas cenas de resgate nos escombros para tudo se repetir no próximo verão. As ´águas do monte´ sempre cairam e vão continuar a cair, inspirando tristes cantigas e nenhuma atitude.
Aqui na terrinha, felizmente não houve nenhum problema mais grave.
Grande abraço!
Amigo, não sabia que a vergonha vinha de tão longíncua época. está mais do que na hora de criarmos a operação "Cidade Seca: eu apoio".
Boa, Márcio! Já pode mandar a sugestão para o Ancelmo Góis.
Abraços.
Li o artigo agora, André, muito bom e muito oportuno.
Um abraço
Obrigado, Ronaldo. Espero que nos próximos 200 anos as coisas melhorem um pouco.
Abraços.
Seu texto está perfeito... Infelizmente, reflete uma realidade que vem se repetindo ao longo do tempo. Para mim, falta planejamento urbano e mais consciência por parte da nossa população.
Abraços,
Obrigado, professor. É verdade, mas também falta menos politicagem e mais ação. O problema é que daqui a pouco só vão falar em Copa do Mundo e tudo vai se esquecer, vai render no máximo um Globo Repórter.
Abraços.
Seus textos são uma verdadeira aula de redação,ah,de História também.
Este texto me fez recordar o do Rios Antigos. Muto bom, André.Abraços Claudia
Obrigado, Cláudia. É, são textos de certa forma relacionados, pois o Rio, infelizmente, foi construído sobre os leitos dos rios, que dez em quando resolvem mostrar que estão ali, ó, bem pertinhos.
Obrigado mais uma vez. Beijos!
Ainda não temos canções nem réquiem para eternizar a tristeza, apenas a indignação, críticas e músculos para tentar ajudar nos postos de recolhimento de doações. Nem as famosas "Águas de março" entenderam o que se passa e o que se passou... passará?
Seu comentário me lembrou Mário Quintana: "Todos estes que atravancam o meu caminho/Eles passarão/Eu passarinho. Podendo se referir a políticos, aos que sujam as ruas, aos que se beneficiam e perpetuam a miséria alheia.
Beijos!
É... o pior de tudo é saber que o Morro do Bumba tratava-se de um monte de lixo... que o próprio governo Urbanizou. Como é possível Urbanizar um monte de lixo? Agora é fácil culpar a população carente por ter construído casas em áreas impróprias...
Bjs,
Cirlene
Oi, Ci! Que bom vê-la aqui.
Você conhece bem aquela região, não é? O pior é que a UFF, ali pertinho, tem vários estudos de urbanismo, mas ninguém dá atenção ao saber acadêmico nestas situações. O importante é garantir votos e mais votos. Ô raça!
Apareça, hein. :)
Beijinhos.
Meu caro Mansur
Seus textos como sempre perfeitos. Tanto aqui, como fora daqui...
Parabéns pela excelente resenha de sua autoria publicada no jornal O Globo de sábado, 3 de abril de 2010.
O livro "Estética e Poder - Os três centros do Rio de Janeiro" me parece ser um trabalho excelente. Muito em breve, pretendo tê-lo em minha estante.
Abraços!
Obrigado, professor. Lembrei do senhor quando recebi o livro, pois além de ser uma pesquisa bem original é ricamente ilustrado. Vale a pena ter na estante sim.
Abraços.
"Cidade Lagoa"
Essa cidade que ainda é maravilhosa
Tão cantada em verso e prosa
Desde o tempo da vovó
Tem um problema vitalício e renitente
Qualquer chuva causa enchente
Não precisa ser toró
Basta que chova mais ou menos meia hora
É batata, não demora
Enche tudo por aí
Toda cidade é uma enorme cahoeira
Que da praça da Bandeira
Vou de lancha a Catumbi
Que maravilha nossa linda Guanabara
Tudo enguiça, tudo para
Todo trânsito engarrafa
Quem tiver pressa seja velho ou seja moço
Entre n'água até o pescoço
E peça a deus pra ser girafa
Por isso agora já comprei minha canoa
Pra remar nessa lagoa
Cada vez que a chuva cai
E se uma boa me pedir uma carona
Com prazer eu levo a dona
Na canoa do papai
(Moreira da Silva)
Boa trilha sonora, Walter. O Kid Morengueira sabia do que estava falando.
Valeu! Abraços.
E aconteceu de novo, e de novo, e de novo...
Exatamente, Simone. É a frase mais ouvida no verão: "Todo ano é a mesma coisa". Beijos.
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