1.06.2007

TIGRES NA CIDADE


Faz muito tempo, mas houve uma época em que os tigres infestavam as ruas da cidade do Rio de Janeiro, principalmente à noite. Embora não fossem de verdade, a sua simples aparição numa esquina já fazia com que os mais prevenidos atravessassem a rua, com o pavor do que um simples esbarrão neste temido personagem da vida carioca de antigamente poderia acarretar. Mas que tigres eram esses?

Tigres nada mais eram do que os escravos que carregavam os dejetos das casas para jogarem no mar ou em rios e lagos. As fezes e águas servidas, para usar um termo típico dos sanitaristas, eram carregadas em baldes na cabeça pelos escravos e a sua definição provoca controvérsias entre historiadores. Para alguns, tigres eram os escravos, para outros eram os baldes, e para mais alguns eram o conjunto escravo-balde. “O conjunto ‘negro-barril’ foi apelidado de ‘tigre’, pois não menos assustadora do que a de uma fera se afigurava, aos transeuntes das ruas desertas, de precárias iluminação, a aproximação de tais personagens, de cujo choque, involuntário ou proposital, podemos muito bem imaginar as conseqüências”(1). Havia lugares determinados na praia, em pontes de madeira, para os escravos jogarem os dejetos, mas quase ninguém os respeitava.

Os tigres saíam de casa geralmente à tardinha. “Era a hora dos Tigres, nome que se dava aos escravos que carregavam à cabeça, no interior de grandes barricas, os despejos das residências, que vinham atirar nas praias”(2). O pior era quando surgia, digamos, uma pequena “fresquinha” nessas horas. “O vento soprava, espalhava o ‘perfume’ e era um desespero”(2).

Adolfo Morales de los Rios Filho também destaca um aspecto repugnante deste triste trabalho, realizado até a metade do século 19, quando surgiram empresas que faziam o serviço em carroças, levando os baldes fechados até barcaças e depois despejando os detritos no meio da Baía. “Muitas vezes o fundo do barril cedia e os repugnantes despejos, emporcalhando as roupas dos pobres escravos, lhes deixavam marcas que o populacho julgava assemelharem-se às pintas das peles dos verdadeiros tigres”(3).

Muitos tigres jogavam os despejos na vala construída para drenar as águas as antiga Lagoa de Santo Antônio (onde é hoje o Largo da Carioca) para o mar, na rua do Aljube (atual rua do Acre). Estava vala atravessava toda a área onde é hoje a rua Uruguaiana, que por isso era chamada de rua da Vala. Ela foi construída a pedido dos religiosos do Convento e da Igreja de Santo Antônio, que reclamavam da água parada da lagoa, foco de mosquitos e cheiro ruim. Com o tempo, no entanto, a vala ia se enchendo de porcarias, até que já na segunda metade do século 18 o Vice-Rei, Conde da Cunha, mandou cobri-la de lajes de pedra. Mas a verdadeira razão que circulava na época para a atitude do Vice-Rei era por “haver caído nela certa noite escura, no decorrer de uma aventura galante, o mais graduado dos seus ajudantes...”(4) As quedas naquele depósito de imundícies eram muito comuns, já que a única iluminação confiável na época era a lua cheia.

O serviço realizado pela Companhia de Limpeza do francês Mr. Gravasser, a partir da década de 40 do século 19, foi considerado bastante eficiente. Os barris eram devolvidos vazios e limpos para os clientes, mas mesmo assim essa horrível atividade só seria abolida de vez com a implantação do sistema de esgotos da cidade, a partir de 1864, sendo o Rio de Janeiro a segunda capital do mundo – atrás apenas de Londres – a ter um sistema de esgoto. E os tigres, felizmente, nunca mais foram vistos com suas expressões tristes pelas calçadas da cidade.

FONTES CONSULTADAS:

(1) - "O saneamento do meio físico (O Rio de Janeiro em seus 400 anos) - Stelis Emanuel de Alencar Roxo e Manoel Ferreira.

(2) - Memórias do Rio - Sérgio D.T. Macedo.

(3) O Rio de Janeiro imperial - Adolfo Morales de los Rios Filho.

(4) - História das ruas do Rio - Brasil Gerson.


* Veja também (se tiver paciência) meu romance Vera Lúcia (romanceveralucia.blogspot.com) e meu livro de contos Superávit, o herói brasileiro (superavitoheroibrasileiro.blogspot.com

13 comentários:

Anônimo disse...

Convenhamos que, se pensarmos bem, a porcariada ainda continua um pouco. O Largo da Carioca cheira a xixi (para não usar termos chulos neste blog limpinho)! Quando chove é aquela beleza. Nessas horas é que me lembro daquela famosa versão da canção "Cidade Maravilhosa": "Rio, cidade/Que me seduz/ De dia, falta água/De noite, falta luz!

Bisous!

Anônimo disse...

Na verdade, em alguns dias, no centro da cidade, principalmente nas noites de sexta, o cheiro fica tão ruim que parece que a gente voltou ao tempo dos tigres.

Beijinhos e obrigado pelo ´blog limpinho´.

E Madeleine?

Anônimo disse...

Mas não é só a xixi que cheira a cidade. Em alguns lugares, principalmente os mais escondidinhos, o fedor é insuportável em razão dos dejetos de mendigos.
Não dá para imaginar como nossos antepassados eram "porquinhos"; era tanta imundície que, esclarece as diversas doenças das quais padeciam os nossos avós.
Mansur, seu blog está culturalmente rico. Parabéns!
Bjs

Anônimo disse...

Madeleine ressurgiu das cinzas...Hehehe.Se bem que é um texto que você já leu há algum tempo. Não sei se lembra. Vá lá. Talvez, a visão não seja a mesma da época.
Beijos

Anônimo disse...

Que beleza! De volta aos posts históricos! Pelo que sei (acho que está num destes livros citados na bibliografia do texto), a expressão "enfezado" vem dessa nobre atividades. Esses escravos esbravejavam quando chamados, mui ironicamente, de "tigres" e, enfezados, ficavam "enfezados" (bleargh!).
Abraços

Anônimo disse...

Obrigado pelo elogio, Aline. Realmente, o odor em certas áreas do centro da cidade deve ser comparável ao futum de antigamente. Os nossos avós deviam sofrer muito com os tigres e outros representantes do mundo animal (humano) da época. Mas estamos quase chegando lá. O carnaval vem aí e o cheiro de urina vai se espalhar por toda a folia da cidade.

O enfezado tem origem mesmo nos tigres, Marcello, embora, como em toda a informação histórica, tenha outras versões. Por isso, pense duas vezes antes de chamar alguém de enfezado.

Abraços.

Anônimo disse...

Até que fiquei curioso ... :)
Tenho lido todos...
Abraços

Anônimo disse...

Este cidadão aí de cima é seu famoso irmão, André?

Anônimo disse...

Não, é meu primo.

Anônimo disse...

Daí vem a marca de TUBOS E CONEXÕES TIGRE!

Anônimo disse...

Oi, Mansur
Queria mesmo o seu email, que (ainda) não consegui. Escrevo pra te agradecer a resenha. Minha resposta está no blog, dá uma olhada lá: www.noga.blog.br
Grande abraço/ Noga Lubicz Sklar

Anônimo disse...

Esse problema não se restringe apenas a Cidade Maravilhosa... em muitos lugares de São Paulo, principalmente o que consideramos como centro velho, o odor e a sujeira são insuportáveis. Infelizmente, a limpeza e a manutenção desses lugares não é um trabalho apenas do poder público, bem que as pessoas( tigres, porquinhos e outros animais..rs) poderiam colaborar fazendo cada um a sua parte.
Estou adorando essas histórias do Rio.
Beijoss

Anônimo disse...

´Tigres, porquinhos e outros animais...´ O problema é esse. Aqui no Rio, sempre vejo gente jogando papel na rua, mesmo com aquelas latas de lixo cor de abóbora pertinho. A questão é de educação mesmo. Ou você tem ou não tem. Não adianta.

Beijos.